As Agências de Publicidade Vão Sobreviver à Era da IA? O Mercado Criativo à Beira da Reinvenção

Há uma tensão silenciosa, mas crescente, que paira sobre as agências de publicidade. Ela não vem de uma nova concorrente nem de uma mudança radical de comportamento do consumidor. Vem de algo mais sutil e, ao mesmo tempo, mais disruptivo: a inteligência artificial. O recente anúncio da Meta, combinado às ações da Baidu na China, evidencia que a indústria criativa está sendo desafiada no que tem de mais essencial — a criatividade.

Em junho, Mark Zuckerberg anunciou que até 2026 sua empresa automatizará por completo o ciclo publicitário: da criação dos anúncios à sua veiculação e segmentação, tudo será feito por inteligência artificial. “Sem equipes criativas, sem compradores de mídia e sem a necessidade de segmentação manual de público”, disse ele. Trata-se de uma mudança sísmica no modelo de negócio da publicidade como a conhecemos.

Na China, o movimento é ainda mais ousado. A Baidu lançou mão de gêmeos digitais — avatares idênticos a apresentadores reais — para conduzir transmissões ao vivo que bateram recordes de vendas. Luo Yonghao, uma celebridade local de infomerciais, arrecadou US$ 7 milhões em seis horas em uma live conduzida inteiramente por seu clone digital. Nenhum humano apareceu diante da câmera naquele dia. E ninguém sentiu falta.

Se esses episódios parecem isolados ou experimentais, vale lembrar que o terreno está sendo preparado há anos. Ferramentas como Midjourney, Runway, D-ID e Pika Labs já conseguem produzir imagens e vídeos com qualidade cinematográfica, baseadas apenas em prompts textuais. Em um cenário de eficiência, escala e custos reduzidos, os argumentos para manter equipes robustas de criação tornam-se mais difíceis de sustentar.

O Fim do Mad Men?

A publicidade sempre teve um pé na arte e outro no negócio. A série Mad Men, um dos maiores retratos ficcionais do setor, cristalizou o romantismo da profissão criativa. Ali, diretores de criação como Don Draper emocionavam clientes com apresentações quase teatrais, vendendo não apenas um produto, mas uma ideia, uma aspiração. Era uma era onde a intuição, a observação e a sensibilidade eram as moedas mais valiosas.

Esse tempo, ao que tudo indica, está em contagem regressiva. Com a IA assumindo tarefas como brainstorming, redação de roteiros, edição de vídeos, escolha de trilhas sonoras e até análise de público, o espaço para o criativo humano encolhe. Agências que antes entregavam campanhas com dezenas de profissionais agora disputam espaço com softwares que fazem o mesmo trabalho em minutos.

É claro que isso não significa o fim imediato do setor. Mas impõe uma reinvenção dolorosa. Agências full service tendem a encolher. Departamentos de mídia já estão sendo substituídos por plataformas programáticas. E agora, até o sagrado território da criação está sob ataque.

Escalar a Criatividade: Missão Cumprida (pela IA)

Historicamente, o grande desafio da criatividade era sua escalabilidade. Não é possível colocar uma equipe de redatores para trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana. A IA resolve essa limitação com facilidade. Um algoritmo pode testar centenas de versões de uma mesma campanha, adaptando linguagem, visual e canal de forma quase instantânea. Algo impensável para qualquer equipe humana.

O caso da Kalshi, nos Estados Unidos, é emblemático. A empresa lançou um comercial completamente gerado por inteligência artificial, sob a direção de um influenciador digital. O vídeo foi exibido durante as finais da NBA — uma das maiores audiências do ano. Custou uma fração do que custaria uma produção tradicional, levou dois dias para ficar pronto e gerou ampla repercussão. A pergunta inevitável: por que gastar milhões com locações, câmeras, equipes e atores se o público parece satisfeito com algo mais barato, mais rápido e igualmente eficaz?

Humanos Ainda Têm Espaço?

Apesar do avanço inegável da IA, seria precipitado decretar o fim da criatividade humana. Há nuances que as máquinas ainda não conseguem reproduzir. O toque emocional, a ambiguidade intencional, o subtexto cultural — esses elementos seguem sendo território dos humanos.

A verdadeira ameaça às agências, portanto, não é a IA em si, mas a hesitação em se adaptar. Os profissionais que se recusarem a aprender a operar essas ferramentas estarão, de fato, em desvantagem. Mas aqueles que as dominarem, combinando sensibilidade humana com capacidade técnica, tendem a liderar a nova era da comunicação.

Em vez de resistência, o momento exige transformação. Assim como os fotógrafos migraram para o digital, os publicitários precisarão migrar para o prompt. Isso não significa perder identidade criativa, mas repensar o modo de criá-la.

Do Fluxo Criativo ao Fluxo de Dados

Uma das maiores mudanças é epistemológica. Durante décadas, a publicidade se baseou na inspiração, na aposta, no instinto. Hoje, ela é cada vez mais orientada por dados. A IA transforma o criativo em operador de sistemas — alguém que testa, valida, itera. A intuição ainda conta, mas está subordinada à performance.

Nesse contexto, a criatividade se torna um processo contínuo de otimização. Não se trata mais de criar o “filme da campanha”, mas de gerar dezenas de variações testáveis. A peça perfeita é aquela que converte — e não necessariamente a mais bonita, engraçada ou emocionante.

Isso exige um novo perfil profissional: mais técnico, mais analítico, mas ainda dotado de sensibilidade. O criativo do futuro será híbrido — parte artista, parte engenheiro.

Redução de Custos: Incentivo Irresistível

Nenhuma mudança ganha tração sem incentivo financeiro. E nesse ponto, a IA é irresistível. O custo para produzir conteúdo de alta qualidade despenca com as ferramentas atuais. Pequenas empresas que antes não conseguiam contratar agências agora conseguem gerar campanhas sozinhas. Grandes empresas, por sua vez, podem otimizar seus investimentos, reduzindo custos operacionais e aumentando a frequência das campanhas.

Esse novo equilíbrio econômico coloca as agências sob forte pressão. Sua existência dependerá menos da capacidade de produzir conteúdo e mais da capacidade de gerar valor estratégico. Aqueles que entenderem o negócio do cliente, que conectarem marca a propósito, que desenharem jornadas completas — esses continuarão relevantes.

O Papel das Marcas e o Valor da Autenticidade

Se por um lado a IA oferece eficiência, por outro ela traz um desafio delicado: como manter autenticidade em um mundo onde todos podem gerar conteúdo perfeito? A saturação visual tende a crescer. Quando tudo for bonito, dinâmico e tecnicamente impecável, o que vai chamar atenção?

Paradoxalmente, o imperfeito pode voltar a ter valor. O vídeo “feito à mão”, a campanha com erros sutis, o rosto humano — tudo isso pode se tornar diferencial. As marcas terão que equilibrar escala com personalidade. E nesse ponto, a criatividade humana segue insubstituível.

Reinvenção ou Recuo

As agências de publicidade estão, de fato, diante de um ponto de inflexão. Algumas fecharão as portas. Outras, se reinventarão como estúdios de inovação, consultorias de branding, hubs de conteúdo com propósito. O que está claro é que o modelo tradicional, baseado em departamentos estanques e entregas longas, não sobreviverá à agilidade dos algoritmos.

A IA não precisa ser inimiga. Ela pode ser aliada. Mas isso depende da disposição de cada profissional — e cada agência — em reconhecer que o jogo mudou. Não basta mais ter boas ideias. É preciso saber traduzi-las em sistemas, testá-las em dados, adaptá-las em tempo real.

Talvez a pergunta certa não seja “as agências vão sobreviver?”. A pergunta certa é: quem, dentro delas, está disposto a evoluir?