O sertão não está só no mapa do Nordeste, ele chegou às margens do Tapajós. Na comunidade Retiro, em Santarém (PA), dona Nilzete Araújo recorda que, por muito tempo, a família dependia da água do igarapé para todas as tarefas cotidianas: banho, lavar roupa, preparar comida. Ocorre que a expansão dos períodos de seca tornou esse recurso escasso, contaminado ou simplesmente inacessível. A viagem de mais de duas horas por lancha, até comunidades remotas, atravessa o Rio Tapajós em toda sua grandeza e desafia o senso comum: como pode existir tanta água em torno e tamanha sede naquele chão?
Esse paradoxo torna ainda mais urgente a ação implementada ali: o Programa Cisternas, aliado local de resiliência climática na Bacia do Tapajós, editado graças à articulação entre o Projeto Saúde e Alegria (PSA), comunidades tradicionais e o aparato público. O programa leva, até o quintal de cada casa, água tratada e dignidade e, com isso, freia o avanço de um dos efeitos mais perversos da crise climática: a insegurança hídrica que corrói o tecido social e produtivo.
Durante as estiagens críticas impostas pelos eventos climáticos extremos, o nível do Tapajós tem sido declarado crítico pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Comunidades inteiras passam a viver ilhadas, sem transporte, sem comida e, sobretudo, sem água potável. A escassez compromete ecossistemas inteiros, acelera a degradação do solo e torna prática a desertificação de partes da floresta e da várzea. Os impactos reverberam na produção de alimentos e no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente os que versam sobre fome zero (ODS 2), água potável (ODS 6), ação climática (ODS 13) e vida terrestre (ODS 15).
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No Retiro, a virada veio quando foi instalado um microssistema de abastecimento de água. A iniciativa foi mobilizada em regime de mutirão, com as famílias carregando materiais, construindo calhas, reservatórios e redes básicas. Hoje, Nilzete pode regar sua horta no quintal, lavar a mandioca, manter hábitos tradicionais com dignidade. Ela ajusta o olhar e afirma: “mudou muito para a gente”. O microssistema não é luxo: é ponte entre vulnerabilidade e vida.
Antes da intervenção, as crianças tinham de se deslocar ao igarapé muito cedo para banho e higiene, enfrentando frio e distância. Hoje, o cenário se altera radicalmente. O coordenador local do microssistema, Dionei Tárcio, relembra que toda manhã era uma operação de logística, algo que, com água a poucos passos, se tornou rotina simples e humana.
O desenho dessa transformação tem raízes profundas: o diálogo começou em 2020 entre a comunidade e o PSA. O engenho comunitário entrou em cena: mutirões carregaram estruturas, adaptaram estratégias, superaram obstáculos logísticos. Com o tempo, a água deixou de ser promessa distante e passou a correr dentro de casa. Na cheia ou na seca, o fornecimento permanece com qualidade. A água virou trabalho, sustento e cuidado.
O Programa Cisternas, sob gestão do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), adaptou-se ao bioma amazônico e vem implantando tecnologias sociais desde 2018 na Bacia do Tapajós. Comunidades de várzea e de terra firme, assentamentos agroextrativistas, unidades de conservação e territórios indígenas foram incluídos no escopo. Entre 2019 e 2022, comunidades de Resex Tapajós-Arapiuns como Retiro, Parauá e Mangal foram beneficiadas. Em 2023, o programa alçou novo horizonte: atender 25 comunidades até 2026.
O diferencial amazônico está nas soluções mais complexas. Não basta cisterna de telhado: é preciso redes hidráulicas comunitárias, energia solar para bombeamento, banheiros, esgoto e tratamento doméstico. Nesse sentido, o programa tem evoluído: no Pará, já foram feitas mais de 480 entregas, e tecnologias com energia fotovoltaica passam a integrar os sistemas.
Esse modelo sustenta-se na participação comunitária. Desde a identificação das necessidades até a manutenção dos sistemas, moradores são protagonistas. Assim, o programa reforça não apenas infraestrutura, mas consciência de pertencimento — ao dizer que o território não é apenas palco, mas sujeito do processo. Jussara Salgado, coordenadora da infraestrutura comunitária do PSA, resume: “com isso, a gente torna a comunidade mais resiliente” frente às secas crescentes.
A mobilização local não é apenas técnica. Em Aveiro, comunidades da Resex Tapajós-Arapiuns receberam 20 sistemas de abastecimento com participação ativa no carregamento dos materiais. Facebook A presença do PSA é fundamental, pois é o ator que articula a execução, a mobilização e a interface com famílias ribeirinhas.
Os impactos pretendidos vão além da porta de casa. Com água segura disponível, muitas comunidades retomaram hortas, produzem alimento local, cuidam de animais e reduzem o risco sanitário. A escassez deixa de ceifar autonomia para entregar possibilidade. A água deixa de ser privilégio para virar direito.
Outra dimensão essencial é financeira e institucional. O Programa Cisternas está previsto em lei (Lei 12.873/2013, com decreto de regulamentação em 2018), e compõe o arcabouço de políticas públicas de segurança hídrica para população rural. Também obtém recursos via editais e parcerias com instituições como o Banco do Brasil e o BNDES, com aporte recente de R$ 40 milhões para tecnologias de produção no Semiárido e Amazônia. Na Amazônia, construções comunitárias com energia solar e banheiros têm emergido como inovações regionais.
Em um cenário climático onde secas se estendem, rios baixam, passagem e vida se contratam, o Programa Cisternas traz oxigênio institucional e existencial. Ele demonstra que adaptação climática se compõe de escuta, justiça e engenharia social, não de soluções mágicas importadas. A água que chega ao lar diminui vulnerabilidades e fortalece tecidos comunitários.
No Brasil de 2025, enquanto discursos circulam em eventos e cúpulas, esse microssistema no Tapajós aparece como fruto de persistência: de planos que revertem em torneiras, de políticas que se materializam, de esperanças que se transformam em plantas irrigadas no quintal. É um laboratório vivo de resiliência amazônica que pulsa contra o calor da crise climática.