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Como mulheres negras e indígenas usaram saberes ancestrais para enfrentar a violência no século XVIII

Banho de cheiro, tradição e resistência

“Tem pataqueira, tem patchouli, o famoso bogarim, baunilha, cheirosa, a famosa priprioca…”. Os versos da música Banzeiro, da paraense Dona Onete, revelam mais do que perfumes e ervas da floresta: falam de um saber ancestral, passado de geração em geração por meio das práticas de cura, proteção e espiritualidade. No Pará, o famoso “banho de cheiro” é um símbolo vivo dessa herança.

Mas o que aconteceria se todas as erveiras do mercado do Ver-o-Peso fossem hoje acusadas de feitiçaria? No século XVIII, esse era um risco real e fatal.

Joana Maria: entre feitiços e castigos

A história da escravizada Joana Maria, denunciada à Santa Inquisição por práticas consideradas “bruxaria”, é resgatada no artigo “Joana Maria: A Feiticeira Negra Denunciada ao Santo Ofício da Inquisição no Grão-Pará (1763-1769)”, escrito por Juliane de Miranda Souza. Segundo a pesquisadora, Joana utilizava raízes, ervas e outros elementos naturais com o objetivo de suavizar o coração de seus senhores ou, em outras palavras, tentar sobreviver ao cotidiano brutal da escravidão.

Entre suas ações, está o uso de feitiços voltados a Filipa, uma mulher indígena que também vivia no engenho. O objetivo de Joana era conquistar a simpatia da indígena e, por meio dela, influenciar o senhor Gonçalo José, tornando-o menos violento em seus castigos.

Magia como ferramenta de sobrevivência

“Ela fazia isso para tentar fugir das punições, como os castigos no tronco”, explica Juliane. A trajetória de Joana foi minuciosamente analisada com base em documentos históricos da época, especialmente do Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará (1763–1769).

A metodologia da micro-história foi essencial para compreender os contextos sociais e culturais vividos por mulheres racializadas acusadas de feitiçaria. A pesquisadora destaca que essas mulheres construíram redes de proteção e apoio umas com as outras, especialmente entre negras e indígenas.

Relações de afeto em meio ao horror

O estudo mostra que, apesar das tensões e conflitos, havia também laços de solidariedade e afetividade entre essas mulheres. “Elas criavam teias de relacionamento multissociais com um único objetivo: sobreviver às condições adversas impostas pela escravidão e pela sociedade colonial”, afirma Juliane.

Essas relações muitas vezes passavam por trocas de saberes e práticas mágico-religiosas, construindo espaços de resistência dentro do sistema escravagista.

Raízes que ecoam no presente

Juliane tem apenas 20 anos, mas carrega em si a força de muitas gerações. Neta de curandeira, benzedeira e puxadeira, ela cursa Licenciatura em História e participa de grupos de pesquisa que abordam a Amazônia colonial, a história indígena e os impérios ibéricos. Seu artigo foi orientado pelo professor Rafael Ivan Chambouleyron (IFCH-UFPA) e apresentado no XXXV Seminário de Iniciação Científica da UFPA.

Além da pesquisa, Juliane se dedica à vida acadêmica com o objetivo de seguir no mestrado e doutorado, até chegar à docência. Nos momentos de lazer, gosta de pedalar, cozinhar e tomar banho de rio, um gesto simples, mas carregado de ancestralidade.

Para quem sonha em pesquisar

A jovem historiadora deixa um conselho para outras mulheres que desejam trilhar o caminho da pesquisa: “Encontre um tema que você goste e que possa gerar impacto positivo na sua comunidade. Isso ajuda muito a seguir em frente, mesmo diante das dificuldades”.

A história de Joana Maria não é apenas um retrato do passado. É um lembrete poderoso de que o saber ancestral das mulheres negras e indígenas, tantas vezes criminalizado, também foi e ainda é uma forma de resistência.

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