Avanço da Neurotecnologia Requer Proteção à Privacidade Mental

 

A psicóloga Carmen Galluzzi, de São Paulo, começou a sentir um cansaço fora do comum aos 48 anos. Inicialmente, ela atribuiu o mal-estar ao estresse de equilibrar trabalho, estudo e tarefas domésticas. No entanto, quando começou a perder força muscular e percebeu que seus movimentos estavam se tornando mais lentos e limitados, ela percebeu que algo mais sério estava acontecendo.

Nos três anos seguintes, Carmen consultou vários especialistas e fez muitos exames. Finalmente, um neurologista deu o diagnóstico definitivo: “Carmen, você tem Parkinson”, disse o médico. “Foi um choque, mas a partir daí, pude decidir o caminho a seguir. O médico me explicou que a doença era progressiva e incurável, mas que os sintomas iniciais poderiam ser controlados com o tratamento adequado”, disse a psicóloga.

Pouco depois de receber o diagnóstico, Carmen se aposentou por invalidez, deixou o trabalho e passou a cuidar da saúde. No entanto, como a cura para o Parkinson ainda não foi encontrada, algumas consequências da doença se intensificaram. Isso motivou a psicóloga a, 13 anos após ser diagnosticada e aos 63 anos de idade, aceitar se submeter a uma cirurgia complexa, a estimulação cerebral profunda (DBS, na sigla em inglês).

A DBS é indicada para o tratamento de doenças neuropsiquiátricas, incluindo epilepsia e depressão resistente ao tratamento. Consiste no implante de eletrodos no cérebro do paciente. Dois fios subcutâneos conectam os finos condutores de corrente elétrica a uma microbateria inserida sob a pele, na altura do peito do paciente. Como um marca-passo, o conjunto emite pulsações elétricas em áreas cerebrais específicas, ajudando a controlar os impulsos nervosos e minimizando os tremores causados pelo Parkinson.

A cirurgia, realizada em junho de 2023, durou cerca de dez horas. Durante o tempo em que a calota craniana estava aberta, a psicóloga permaneceu consciente, sedada apenas com anestesia local. Isso porque, para identificar o ponto exato para instalar os eletrodos, os cirurgiões precisam que os pacientes reajam a seus comandos de voz.

“Todo mundo acha que uma cirurgia é para ser feita quando não estamos bem. Não. Ela é feita para otimizar o tratamento e nos dar mais qualidade de vida. Eu tive alta já no dia seguinte”, contou Carmen.

Investimentos

Realizada há cerca de 40 anos, a DBS ainda é considerada um procedimento médico de ponta. No entanto, de acordo com o neurocirurgião Bruno Burjaili, médico que operou Carmen, é um dos muitos métodos terapêuticos resultantes da contínua evolução das neurociências – campo da ciência que estuda o sistema nervoso (o conjunto cérebro-medula espinhal-nervos) e as mudanças que este sofre ao longo dos anos.

“A DBS é um grande avanço, resultado do aperfeiçoamento e do desenvolvimento das técnicas e dos aparatos neurotecnológicos, mas, diante do assombroso desenvolvimento recente das neurociências, e considerando as perspectivas do que está por vir, já podemos considerá-la uma técnica consolidada, de certa forma antiga”, afirmou Burjaili, referindo-se ao ritmo acelerado de descobertas e inovações que revolucionaram os métodos de investigação dos fenômenos mentais com a promessa de encontrar respostas para doenças neurodegenerativas (Alzheimer, Parkinson, escleroses, atrofia e distrofia muscular, entre outras), distúrbios de aprendizado e transtornos mentais como a depressão resistente aos tratamentos tradicionais.

Para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), “estamos no limiar de uma nova revolução tecnológica”. Em um relatório divulgado no ano passado, a organização aponta que, de 2013 a 2023, os investimentos governamentais globais em pesquisas relacionadas às neurociências superaram US$ 6 bilhões, ou cerca de R$ 29,8 bilhões. O montante inclui gastos militares, como os US$ 10 milhões que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos prometeu destinar à criação de um instituto dedicado ao avanço da pesquisa unificada em inteligência artificial e natural. O objetivo: “melhorar a compreensão de como o cérebro funciona e dar continuidade a projetos de IA [inteligência artificial] mais capazes e confiáveis”.

Os investimentos privados alcançaram, de 2010 a 2020, os US$ 33,2 bilhões, ou mais de R$ 165 bilhões. Entre as empresas interessadas nas possibilidades comerciais dos resultados de pesquisas neurocientíficas estão gigantes como a Google e a Microsoft. Há um mês, a Neuralink, do bilionário Elon Musk, anunciou que implantou o primeiro chip eletrônico no cérebro de um paciente, com o objetivo de estudar formas de reabilitar o sistema nervoso de pessoas com lesões da medula espinhal ou esclerose lateral amiotrófica, devolvendo-lhes os movimentos.

A startup norte-americana Kernel desenvolveu um capacete que promete mapear a atividade cerebral e identificar estados de ânimo, apontando tratamentos clínicos. Há um ano, a Philips e a Kookon lançaram no mercado um fone de ouvido sem fio que, em conjunto com um aplicativo, promete monitorar indicadores fisiológicos do usuário enquanto ele estiver dormindo e proporcionar um “sono repousante e rejuvenescedor”, indicando músicas ou sons adequados e ajustando o volume ao estágio do sono.

Além do crescente aporte de dinheiro, inovações como o aprimoramento da inteligência artificial potencializam o desenvolvimento e o uso das novidades neurotecnológicas, cujo impacto já transcende o campo da saúde, propagando-se para áreas como a educação, segurança, direito, publicidade etc. A exemplo dos resultados das pesquisas com a chamada interface cérebro-máquina (ICM), que buscam identificar sinais neurais e transmiti-los, na forma de algoritmos, para um computador apto a “interpretar” os pensamentos da pessoa a ele conectada, transformando-os em ações.

Mistérios

Desvendar o funcionamento mental e, assim, “compreender” o ser humano. Possibilitar a recuperação de movimentos. Fazer frente às doenças neurodegenerativas. Interligar cérebro e máquinas. Algumas das espantosas promessas das neurociências parecem ficção científica, mas as evidências de que, talvez, muitas delas não estão longe de se tornar reais vêm se avolumando.

Em 2014, milhões de pessoas em todo o mundo testemunharam um paraplégico chutar uma bola durante a cerimônia de abertura da Copa do Mundo de Futebol, no estádio Itaquerão, em São Paulo. O gesto simbólico de Juliano Pinto, que perdeu os movimentos em consequência de um acidente de carro, foi possível graças ao exoesqueleto desenvolvido por uma equipe de cientistas liderada pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor da Universidade de Duke, nos Estados Unidos.

A rápida demonstração da veste robótica controlada por pensamento e desenvolvida com a colaboração de 156 cientistas de diferentes nacionalidades aconteceu apenas 14 meses após o então presidente dos EUA, Barack Obama, anunciar um investimento público-privado de US$ 100 milhões (cerca de R$ 495,2 milhões pelo câmbio atual) no que classificou como “o próximo grande projeto americano”, a Iniciativa Brain.

Em inglês, a palavra brain significa cérebro. No contexto da iniciativa, é, também, a sigla do nome do projeto, Brain Research Through Advancing Innovative Neurotechnologies, ou Pesquisa Cerebral por Meio do Avanço de Neurotecnologias Inovadoras. Acrônimo que revela o objetivo do governo norte-americano: apoiar.